sexta-feira, 9 de abril de 2021

Lula quer uma Lava Jato histórica para chamar de sua

Emiliano Aquino


Em agosto de 2017, Lula deu início a uma espécie de Operação Lava Jato 2: seu objetivo é mudar a história recente do país, tentando caracterizar o movimento contestatário de 2013-2014 como parte de uma conspiração à la "revolução colorida", "guerra híbrida" etc., que teria resultado nas aglomerações golpistas de 2015-2016. Não chega a dizer claramente assim, mas é o que insinua e efetivamente produz na cabeça de algumas pessoas (parte das quais, por isso mesmo, chega a sentir culpa por ter participado das manifs de 2013).

No discurso lulista oficial e de seus seguidores, 2015-2016 é uma continuidade de 2013-2014. No gênio político de Lula nada é inintencional. Cada palavra, cada jargão, cada gesto tem um sentido. Essa "despedida" de 2013 – sim, pois na época, em sua disputa burocrática interna para candidatar-se à sucessão de Dilma, ele as considerou "manifestações democráticas" – tem um duplo aspecto. Um, quer sair-se à esquerda para parte de sua base social que participou das manifestações de Junho (muitos petistas participaram de manifestações, principalmente contra as remoções). Outro, mais importante, quer reafirmar para os donos do país seu compromisso com a ordem política e a disciplina social. O discurso no dia da soltura da prisão e a entrevista com Reinaldo Azevedo na semana passada, em que ele acenou para a Globo, para o Centrão, para os bancos e para o diabo a quatro são – isto sim! – continuidade direta desse revisionismo de 2013.


Esse esforço revisionista pretende, no discurso social mais amplo, negar que houve luta de classes contra o governo do PT. Mas houve, é só que o que houve... e não tanto da parte dos ricos (isso foi sempre ocasional), mas dos trabalhadores pobres.

Pretende negar que houve manifestações indígenas contra a política anti-indigenista do governo Dilma ("Dilma assassina", gritaram irados em abril os índios, que voltaram a manifestar-se em junho). É preciso dizer com todas as letras, o governo antidemocrático de Dilma negou-se a receber os índios, atacou seus direitos territoriais com as construções de hidrelétricas, paralisou demarcações, não reprimiu mineração nas terras indígenas etc.

Pretende negar que as chamadas "obras da copa" desalojaram milhares de moradores, pequenos comerciantes, comunidades urbanas antigas, ocupações etc. Se todas as obras tivessem sido concluídas a tempo, cerca de 250 mil pessoas seriam desalojadas. Pelo menos desde 2011, as comunidades começaram a mobilizar-se; 2013 foi uma continuidade também dessa mobilização, que continuou em 2014. Segundo dados do governo, até julho de 2014 teriam sido despejadas/removidas 11 mil pessoas (o que significaria, se for verdade, um fracasso econômico imenso para as construtoras lulistas), embora os movimentos sociais continuem avaliando que foram sim cerca de 250 mil pessoas.

Pretende negar a enorme insatisfação da juventude proletária (a principal protagonista das ações mais combativas de ruas em 2013) com a violência policial e o encarceramento em massa entre 2003 (quando começa um movimento ascendente) e 2013 (ver o gráfico abaixo copiado de documento do Depen).

Não, esse encarceramento não é resultado de uma política direta dos governos federais do PT, bem sabemos. Mas quem disse que para os centenas de milhares de jovens que foram à ruas se tratava de manifestações políticas certinhas, com pautinhas bem organizadas por representantes a serem negociadas com governos? Haviam uma insatisfação generalizada com a violência dos poderes estatais (guardas civis municipais/metropolitanas (a do Haddad, heim?!), polícias militares e polícias civis, Ministério Público e Judiciário cada vez mais punitivistas etc. (não, não começou com a LJ do Moro!)). Nas ruas, os jovens gritavam, escreviam em cartazes e pichavam em paredes: "Aqui a bala é de borracha, na minha rua é de verdade!"

Um estudo da Universidade Federal de São Carlos mostrava, em 2014, com dados dos anos imediatamente anteriores (2011 e 2012), que o "índice de negros mortos em decorrência de ações policiais a cada 100 mil habitantes em São Paulo é quase três vezes o registrado para a população branca e a taxa de prisões em flagrante de negros é duas vezes e meia a verificada para os brancos". Se formos fuçar, encontraremos dados semelhantes correspondentes a cada um dos Estados em que os jovens proletários tomaram as ruas (Rio de Janeiro, Goiás, Ceará, Minas Gerais etc.).

Pretende negar que no 1º trimestre de 2013 o desemprego havia chegado à taxa de 8,0%, após anos de tendência à queda (voltou a cair no último semestre de 2013, seguindo a cair em 2014, voltando a subir em 2015). Não encontrei nenhum dado sobre o desemprego dos novos graduados (isto é, jovens trabalhadores com nível superior de ensino), mas ouvi muitas vezes de ex-alunos o sentimento de frustração de estar desempregado, mesmo tendo concluído a Universidade.

Os leitos nos hospitais públicos do país decresceram velozmente entre 2012 e 2013. Em 2012, havia 145.099 leitos públicos; em 2013, 142.333. Uma diminuição, em números absolutos de 2.766 leitos; proporcionalmente, uma queda de 2%. A OMS orienta que os países garantam 3,2 leitos para cada 1.000 habitantes. O corte de 2.766 leitos significa – nos termos adequados da OMS – a eliminação de atendimento a relativamente 8.645.625 pessoas. Como a proporção real do Brasil é outra (menos leitos por mil habitantes), o corte desse número de leitos significou naquele ano o desatendimento de um número maior do que 8,7 milhões. Será que as pessoas não sentiriam isso?

Segundo dados parciais, há indícios de que o rendimento médio do trabalhador brasileiro parara de crescer. Em março de 2013, embora maior ao mesmo período no ano anterior, o rendimento médio estava 0,2% menor do que fevereiro de 2013. Os dados referentes a 2015 provam que se constituiu uma tendência à queda do rendimento salarial real dos trabalhadores brasileiros. Sim, há crise no sistema capitalista!

Esse é um quadro incompleto; e principalmente porque – se é que a há – a psique coletiva não é tão objetivista assim, não é um reflexo behaviorista das condições sociais dadas. Mas certamente esse quadro não pode ser desconsiderado na avaliação do movimento insurgente em junho de 2013.

As Jornadas foram a confluências de movimentos muito distintos em suas procedências. Houve as manifestações indígenas em abril e maio, com enorme visibilidade, contra a Hidrelétrica de São Luís de Tapajós e Belo Monte. Houve as manifestações contra os aumentos das tarifas a começar por Porto Alegre, Goiânia, Natal e, finalmente, São Paulo. Havia os protestos, desde o ano anterior, contra os mal-tratos da GCM de São Paulo aos moradores de rua (desde antes do governo de Haddad) [17], mas que continuaram no governo municipal petista (cf. aquiaqui e aqui). Houve a desocupação da Aldeia Maracanã (prédio do antigo Museu do Índio, habitado desde 2006 por indígenas) e os protestos seguidos contra essa desocupação violenta levada a cabo pelo "companheiro" (meu não, do Lula!) Sérgio Cabral.

Os protestos contra as remoções são um capítulo à parte. Eles começaram em 2010, continuaram em 2011 (p. ex., este ou este), 2012, 2013 (p. ex., esteeste etc.) e continuam em 2014.

Quando, em junho, o Movimento Passe Livre, após mais de uma década de ativismo, fez uma série de manifestações em São Paulo, reprimidas pela PM paulista e a GCM paulistana, e um movimento de solidariedade se estabeleceu em todo o país (manifs contra a repressão no dia 17 de junho), as Jornadas de Junho se consolidam como movimento nacional de protestos. Logo, todas as forças do velho mundo se conjuraram contra elas, da Cut à Rede Globo, do Lula a Bolsonaro.

Por enquanto é só. Ainda voltarei a esse assunto. Quem tiver curiosidade, dá uma olhadas nas imagens das manifestações de 2013-2014 (os que estava lá, que roupas usavam, como se relacionavam com a polícia e o que diziam deles os jornais, as TVs e os rádios) e as comparem com as imagens das aglomerações golpistas de 2015-2016 (e também notem os que estavas lá, que roupas usavam, como se relacionavam com a polícia e o que diziam deles os jornais, as TVs e os rádios).

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