segunda-feira, 19 de abril de 2021

Kronstadt

Victor Serge 

Em 5 de março deste ano, o massacre da insurgência do Soviet de Kronstadt em face do governo do partido bolchevique fez 100 anos. Espero que este seja apenas o primeiro de uma pequena série de textos (cartas, artigos, anotações no diário) de Victor Serge, nos anos 1937-38, sobre o soviet rebelde de Kronstadt, que traduzirei e publicarei aqui (por favor, aceito propostas de correção!). Este foi publicado em sua coluna « Les écrits et les faits » (Os escritos e os fatos), em La révolution prolétarienne, a 10 de setembro de 1937. Os termos entre colchetes se encontram na prórpia edição da Maspéro.

Veja também: 

Os escritos e os fatos (La révolution prolétarienne, a 25 de outubro de 1937) 

Sobre Kronstadt em 1921 e outros assuntos (Révolução Prolétarienne25 de agosto de 1938) 

Kronstadt 1921. Defesa de Trotsky. Resposta a Trotsky. (La Révolution prolétarienne25 de outubro de 1938)  

Victor Serge e o totalitarismo stalinista (Vídeo em Subversivídeos sobre Victor Serge)

 


Ataque do Exército Vermelho à fortaleza insurrecta de Kronstadt, no início de março de 1921, quando o gelo já derretia.

Respondendo a um jornalista alemão que o havia interrogado sobre esse assunto, Leon Davidovitch Trotsky publica no Boletim de Oposição Bolchevique-leninista russo (número de julho de 1937) uma carta muito curta sobre a questão da Insurreição de Kronstadt de 1921 e sobre Makhno. Ida Mett respondeu a ele aqui mesmo apresentando novas questões muito judiciosas. Ninguém, a não ser Trotsky, pode dar-nos um dia o grande livro histórico sobre os anos mais duros e mais memoráveis da revolução que nos é necessário a todos para esboçar o balanço dessa imensa experiência. Nós somos numerosos a aguardar e a desejar algo concebido um pouco num espírito crítico, talvez autocrítico... E é por isso que as poucas linhas publicadas pelo Boletim de Oposição me parecem hoje insuficientes e injustos sob diversos pontos de vista. "Resta [a Kronstadt], escreve Trotsky, a massa cinzenta, com grandes pretensões, não disposta a sacrifícios pela revolução. O país passava fome. Os marinheiros de Kronstadt exigiam privilégios... O movimento tinha, assim, um caráter contrarrevolucionário e, tendo os marinheiros apoderado-se da fortaleza, não se tinha outra opção que os conter pela força”. Eu estava em Petrogrado nesse momento, colaborando com Zinoviev; eu vi os acontecimentos de perto; eu li muito atentamente em sequência a coleção dos Izvestia do soviet de Kronstadt insurrecto. É verdade que o país passava fome; seria mesmo verdadeiro dizer que o país estava no limite de suas forças, que ele todo morria literalmente de fome. Mas é inexato que os marinheiros de Kronstadt exigissem privilégios; eles reivindicavam para as cidades em geral a supressão das barreiras policiais (zagraditelnye otriady) que impediam a população de se reabastecer em seus campos por seus próprios meios; mais tarde, quando se viram engajadas em um combate mortal, eles formularam uma reivindicação política extremamente perigosa nesse momento, mas [uma reivindicação política] geral, sinceramente revolucionária e, portanto, desinteressada: "soviets livremente eleitos".

Teria sido fácil evitar a sublevação escutando as reclamações de Kronstadt, discutindo-as; até mesmo satisfazendo aos marinheiros (teríamos a prova disso em pouco tempo). O Comitê Central cometeu o enorme erro de lhes enviar Kalinine, que se conduzia já como um burocrata incapaz e duro, que soube apenas ameaçar, levando vaias. Teria sido fácil, mesmo quando a batalha já tinha começado, evitar o pior: bastaria aceitar a mediação oferecida pelos anarquistas (Emma Goldman e Alexandre Berkman, notadamente) que tinham um contato seguro com os insurrectos. Por razão de prestígio, por excesso de autoritarismo, o Comitê Central se recusou a isso. Em tudo isso, foi enorme a responsabilidade de Zinoviev, presidente do soviete de Petrogrado, que enganou toda a organização do partido, todo o proletariado da cidade, toda a população nos anunciando que "o general branco Kozlowski tinha se apoderado de Kronstadt por traição”. Teria sido fácil, humano, mais político e mais socialista, após a vitória militar conquistada sobre Kronstadt por Vorochilov, Dybenko, Toukhatchevski, não recorrer ao massacre... O massacre que seguiu foi abominável.

As reivindicações econômicas de Kronstadt eram de tal modo legítimos, tão pouco contrarrevolucionárias na realidade, tão fácil de satisfazer que, no momento mesmo em que se fuzilavam os últimos amotinados, Lênin satisfazia essas reivindicações adotando a "nova política econômica"... A NEP lhe foi imposta pelas sublevações de Kronstadt, de Tambov e de outros lugares. Pois é preciso dizer: a clarividência de Lênin e do Comitê Central estava terrivelmente frágil havia vários meses; o Comitê Central não queria ver o que o país inteiro sentia e sabia: que o comunismo de guerra tinha se tornado um impasse em que não se podia viver.

Trotsky havia compreendido isso um ano antes. Desde fevereiro de 1920, ele propunha ao Comitê Central um conjunto de medidas suprimindo as requisições de grãos e estabelecendo uma nova política econômica. Lênin as recusou. Trotsky recuou. Seu erro iria custar muito sofrimento e sangue ao povo russo. Por que não o dizer? Não temos nenhuma necessidade da lenda mentirosa de um Lênin infalível.

Uma vez a batalha engajada entre a Kronstadt vermelha e o governo soviético, a questão se punha nesses termos: qual das duas forças em luta representava melhor o interesse superior dos trabalhadores? Duas cegueiras se chocavam em realidade. Os condutores da insurreição, anarquistas e socialistas revolucionários de esquerda, esperavam uma "terceira revolução" contra a ditadura do partido. Eles não viam – o que, contudo, estava evidente – que o país estava esgotado, sua vanguarda revolucionária estava já dizimada, não tinha mais nem os recursos morais nem os recursos materiais, nem os homens nem as ideias de uma nova revolução mais socialista. Eles desejavam desencadear os elementos de uma tormenta purificadora, mas, em realidade, teriam podido apenas abrir as portas a uma contrarrevolução, camponesa de início, da qual teriam prontamente tomado partido os brancos e a intervenção estrangeira. (Pilsudski se preparava para lançar seus exércitos sobre a Ucrânia). Kronstadt insurrecta não era contrarrevolucionária, mas sua vitória teria conduzido infalivelmente à contrarrevolução. A despeito de seus defeitos e de seus abusos, o partido bolchevique é nesse momento a grande força organizada, inteligente e segura na qual era preciso, apesar de tudo, confiar. A revolução não tem outra armadura e não é mais suscetível de se renovar a fundo. Era como pensávamos nós, comunistas de primeira linha, que ouvíamos tão claramente ranger toda a estrutura do prédio...

Publicado em Serge, Victor; Trotsky, Leon. La lutte contre le stalinisme: correspondance inédite, articles. Paris : François Maspéro, 1977, p. 177-181. Tradução ao português: Emiliano Aquino. 

2 comentários:

  1. Kalinin era da velha guarda bolchevique e morreu em 1946. Procure o discurso aos ferroviários pra ver o quanto lenin chama esses marinheiros de pequenos burgueses que queriam os sovietes sem os bolcheviques.

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  2. Gosto muito de Victor Serge, recentemente li Meia-noite no século, com tradução de Florence Carbone. Excelente!

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