Victor Serge
Este é o segundo artigo de Victor Serge - sobre a sublevação de Kronstadt em 1921 - que traduzo e disponibilizo neste blog. Foi publicado no dia 25 de outubro de 1937 (portanto, 45 dias depois do anterior). Diferentemente do outro, este se compõe de três notas, cada qual com título próprio. Talvez, por isso, no livro que estou tomando como base (ver após a tradução), o editor tenha dado como título da publicação o nome da coluna que os abriga em Révolution Prolétarienne : « Les écrits et les faits » (Os escritos e os fatos), coluna de crítica política escrita por Victor Serge a partir de 1936. A Lutte Ouvrière é a publicação do Partido Operário Internacionalista (Parti Ouvrier Internationaliste), fundado em 1936, secção francesa do Movimento pela IVª Internacional e, a partir de 1938, da IVª Internacional. Nesta tradução, os termos entre colchetes são meus.
Veja também:
Kronstadt (Révolução Prolétarienne, 10 de setembro de 1937)
Sobre Kronstadt em 1921 e outros assuntos (Révolução Prolétarienne, 25 de agosto de 1938)
Kronstadt 1921. Defesa de Trotsky. Resposta a Trotsky. (La Révolution prolétarienne, 25 de outubro de 1938)
Victor Serge e o totalitarismo stalinista (Vídeo em Subversivídeos sobre Victor Serge)
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Após a infantaria chegar a pé, camuflada de branco, a cavalaria do Exército Vermelho avança. |
Comentando por sua vez a carta de
Leon Trotsky, sobre esse assunto, que eu discutia na Révolution Prolétarienne [Revolução
proletária] de 10 de setembro, Lutte
Ouvrière [Luta operária] coloca a questão de uma maneira de tal modo
unilateral que consegue escamoteá-la completamente. Seria tratar de modo
insolente a história e reduzir a uma apologética muito distante de todo o pensamento
marxista o trabalho de análise e de reflexão, que cabe a todos nós, se se visse
em seu comentário mais do que uma nota apressada redigida, por assim dizer, insensivelmente
[sur le marbre]... Lutte Ouvirère escreve:
"A única questão que seria útil responder é esta: a revolução triunfante, mas minada por contradições sociais e econômicas da guerra civil, teve razão ao quebrar movimentos cujo desenvolvimento significava abertura dos partidos à democracia capitalista?"
Essa não é, evidentemente, a única questão, já que há toda a história do bolchevismo e dos sovietes a conhecer; e isso é quase exatamente o contrário do que os revolucionários sempre se perguntaram, com a inquietude mais legítima, a respeito de Kronstadt. A ditadura do proletariado, exercida pelo partido comunista, teve razão ao reprimir pela força os protestos, as reivindicações, as proposições, as manifestações dos trabalhadores no auge da fome? Poderíamos lembrar que antes de Kronstadt houve Astrakhan. Ela teve razão ao reprimir movimentos que, sob sua égide, pediam apenas a democracia operária? Estou inclinado a pensar que, desde cedo, se pesou a mão, isto é, se abusou de métodos administrativos e militares a respeito das massas e dos dissidentes da revolução. A experiência mostrou que isso franqueou a via ao despotismo burocrático. Há aí uma lição a tirar para se retornar a ideia da ditadura do proletariado (contra os possuidores despossuídos), larga e verdadeira democracia dos trabalhadores.
A Lutte Ouvrière "compreende além disso a ocasião de destruir a
lenda que quer que Kronstadt em 1921 tenha sido um imenso massacre. A verdade é
outra... ". Outra a verdade, camaradas? Muito bem, diga-a: sejam precisos,
indiquem suas fontes... Um massacre não precisa ser imenso para ser abominável
e, por definição, antissocialista. Às centenas, senão aos milhares, os
marinheiros de Kronstadt foram fuzilados. Três meses depois, ainda saíam
das prisões de Petrogrado à noite, em pequenos grupos, para serem executados em
porões ou quadras militares. Três meses depois, quando a NEP que eles tinham
reclamado estava proclamada, quando sua morte – secreta – não podia servir nem
mesmo para intimidação! E não eram brancos...
Toda essa página sombria parece
prefigurar um futuro do qual vemos hoje, pois se tornou presente, as trevas. A Lutte Ouvrière lembra que o Xº Congresso
do partido [bolchevique, em 1921], inspirado por Lênin, enviou um grande número
de seus delegados para o assalto a Kronstadt, mas ela não diz tudo a esse
respeito. O Xº Congresso do partido condenará solenemente a Oposição Operária que denunciava desde
então as ururpações da burocracia e reclamava mais democracia para os
trabalhadores. Pela primeira vez, uma oposição, e que tinha grande razão em
vários pontos (Lênin e Trotsky iriam se aperceber disso dois anos mais tarde), estava marcada com um epíteto que não correspondia em nada à sua doutrina (a
resolução do Congresso taxa esses bolcheviques de anarco-sindicalistas),
ameaçada de exclusão e intimidada pelo envio de seus delegados ao front de Kronstadt. Dybenko,
notadamente, foi para lá: ele, que passava por anarquizante.
Releiam a plataforma da Oposição Operária de 1920-21 e pensem que, dezoito meses mais tarde, Lênin, quase no limite de suas forças, proporá a Trotsky um pacto de combate contra a burocracia do partido, cada vez mais insolente. E pensem que, dois anos mais tarde, a Oposição de Esquerda (Trotsky, Preobajenski, Serebriakov, Piatakov, Rakovski) trava seu primeiro combate e será derrotada: já é muito tarde.
Dois dos autores da plataforma da
Oposição operária, velhos militantes
de um quarto de século da revolução, aprisionados há anos, estão talvez ainda
vivos em alguma penitenciária: Chlianikov e Medvedev. Alexandra Kollontai
sobreviveu na carreira diplomática...
Contra o espírito de seita
Esses assuntos estão ainda quentes... Essa é uma razão para não tocar neles? Ao contrário. Vinte anos após a primeira revolução socialista vitoriosa, nós nos sentimos vencidos. De uma magnífica vitória dos trabalhadores, vimos nascer, sobre as bases de uma propriedade socialista dos meios de produção, um regime inumano, profundamente antissocialista pelo tratamento que inflige ao homem. Diante desses resultados, as querelas de seitas não devem retomar? E nossos adversários comuns não fazem um jogo de cena? É fácil (tão bobo) concluir pela falência das revoluções, do marxismo etc.; e fácil aos reformistas dizerem: Ah, se se tivesse seguido os caminhos da democracia! (Como se esses caminhos não tivessem sido seguidos, infelizmente, até o pior limite, em Itália, em Alemanha e em Áustria!). É fácil aos libertários exclamarem: Ah, se tivessem deixado os anarquistas russos fazerem!, enquanto a revolução espanhola vai de derrota em derrota sob nossos olhos, apesar da hegemonia dos anarquistas no movimento operário – e sua boa vontade e sua admirável coragem, que ninguém contestará. Duas palavras pessoais a esse respeito. Os anarquistas frequentemente me reprovaram não ter me levantado suficientemente, na URSS, no tempo de Lênin, contra a repressão ao anarquismo. Essa repressão, sempre a considerei como uma falta, e eu fiz tudo o que pude, em todas as circunstâncias, com tenacidade, para cessá-la ou atenuá-la; mas eu não podia grande coisa. Dever-se-ia melhor compreender agora essas situações, à luz dos acontecimentos da Espanha. Os delegados da CNT ao Congresso extraordinário dos soviets do ano passado não fizeram nada, nada puderam fazer pelos seus camaradas russos perseguidos. A CNT não pôde impedir o estrangulamento do POUM e nem mesmo colocou amplamente a questão do assassinato de [Andrés] Nin. Viu seus próprios membros aprisionados às centenas quando ela participava do poder! Não ignoro, além disso, que ela prepare suas intervenções nos bastidores. Se a CNT não pôde impedir em Espanha a perseguição aos anarquistas, que poderia, na revolução russa, um militante isolado?
Diante de uma tão vasta
experiência de vinte anos e mais, eu vejo apenas uma atitude fecunda, aquela da
análise crítica e do desarmamento do espírito de seita. Tratar-nos uns aos
outros como pequenos burgueses em lugar de estudar, com sangue frio, sob todos
os seus aspectos, os acontecimentos de 1921, por exemplo, não conduziria a
nenhuma parte. Confrontemos antes de tudo nossos pontos de partida mais sãos
com a realidade. As ideias justas não se impõem, mas se as clarifica pelo
estudo e pela reflexão, com boa vontade. Os preciosos exemplos que nos aportava
a revolução russa estão obscurecidos, sujos, comprometidos pela
contrarrevolução burocrática que sequestrou
as velhas bandeiras; só as reencontraremos liberando nosso espírito das
fórmulas usadas, dos clichês desacreditados, dos ressentimentos de seita ou de
pessoas e, sobretudo, da insuportável pretensão ao monopólio da verdade.
Bolchevismo e anarquismo
De um notável artigo sobre as
relações, ou antes, o antagonismo total do bolchevismo e do stalinismo (Boletim de Oposição, nº 58-59), essas
linhas inéditas:
“O autor discutiu muitas vezes com Lênin a possibilidade de oferecer aos anarquistas partes do território onde teriam podido, de acordo com a população, prosseguir suas experiências sem Estado, mas a guerra civil, o bloqueio e a fome deixaram pouco espaço para semelhantes planos".
Essa teria sido a única solução
justa ao problema do anarquismo russo, pois é bem evidente que os camponeses
libertários, reunidos sob as bandeiras negras de um Makhno, tinham direito à autonomia
tanto quanto qualquer minoria étnica. As ideias dos trabalhadores não têm na revolução
um menor direito de cidadania que o sentimento nacional. Mas nenhuma tentativa
séria foi feita nesse sentido, a despeito dos acordos tratados com Makhno contra
os brancos, e prontamente desrespeitados – em ambos os lados ao mesmo tempo; as
maiores responsabilidades devem ser, em todo caso, atribuídos ao mais forte, ao
mais bem organizado, isto é, ao governo bolchevique.
A guerra civil, a fome, o
bloqueio tornaram realmente impossível uma política de tolerância para com do
anarquismo? O movimento anarquista, como todos os outros movimentos de opinião
revolucionária, foi completamente abafado pela repressão somente após a vitória
[do governo bolchevique na guerra civil] e o fim da fome, quando o poder
burocrático começou a se firmar abertamente, de rosto descoberto. Os
dissidentes da revolução tiveram a maior liberdade relativa precisamente
durante a guerra civil e a fome e não esqueçamos que contribuíram com a vitória
dos soviets: Makhno tinha desorganizado a retaguarda de Denikin, Makhno foi um
dos primeiros a chegar à Crimeia branca. Parece certo constatar que, a partir
do fim de 1918-19, um espírito de autoridade, de intolerância, de estatismo
excessivo prevaleceu cada vez mais no Comitê Central, eliminando cada vez mais
brutalmente os princípios de Outubro. Nem Lênin nem Trotsky o contrariaram
realmente, limitaram-se a se servir dele. Tnham razão que a salvação está
na maior firmeza, na organização mais forte do novo Estado socialista, na
disciplina mais rigorosa. Preciamos refletir, nada disso é incompatível com a
democracia operária. Bem ao contrário. Mas os espíritos clarividentes do
partido estão sobrecarregados, esgotados, exaustos: a revolução tem poucos
homens. O sucesso dos métodos despóticos vem precisamente de que estão ao alcance de qualquer um, e foram
desde cedo impostos pelos arrivistas que formaram depois disso a burocracia.
Publicado em Serge, Victor; Trotsky, Leon. La lutte contre le stalinisme: correspondance inédite, articles. Paris : François Maspéro, 1977, p. 182-188. Tradução ao português: Emiliano Aquino.
O artigo é definitivamente útil! a unica ressalva nele é que o autor (um tanto trotskista, e apenas um pouco anarquista) escreve que "as principais repressões dos bolcheviques começaram em 1927. Enquanto naquela época todas as repressões básicas já haviam terminado! Depois de 1927 , este "rolo" de repressão, apenas por inércia, continuou a esmagar "os seus próprios".
ResponderExcluirEm suma, artigo maravilhoso, aguardando a próxima publicação.
Amigo Emiliano,depois de muitos anos guiado pelo ideal da democracia operária preconizado pelos grandes mestres e correntes do socialismo e do anarquismo, hoje se revela,ao menos para mim, pouco sustentável. Difícil conter o avanço da tecnocracia oligárquica no interior dos estados, partidos,sindicatos e de outras formas de organização.
ResponderExcluirA lei de bronze a que se refere Robert Michels parece ter se confirmado
Em 27 teve repressão mesmo, pois trotsky tentou um levante armado.
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