terça-feira, 23 de março de 2021

Carta aberta à Monthly review sobre Xinjiang

"Gostaríamos de falar que campos de internamento fossem um mito, fabricado pelo National Endowment for Democracy e pela CIA. Mas não são. Existem ligações problemáticas entre ativistas e organizações individuais e o Estado de segurança americano, e tem havido erros e equívocos nas reportagens sobre Xinjiang. A aplicabilidade de termos como “genocídio” e “escravidão” pode ser debatida, mas nada disso deve permitir o agnosticismo, muito menos a negação, em relação ao que se constitui claramente numa violação chocante dos direitos dos povos nativos de Xinjiang."

Imagem atribuída a um campo de reeducação chinês em Xinjiang


Caros amigos da Monthly Review,

Como acadêmicos e ativistas comprometidos em traçar um curso para uma esquerda anticapitalista e antiimperialista em meio às crescentes tensões EUA-China, escrevemos em resposta à sua recente republicação de Um relatório e compilação de fontes sobre Xinjiang, de autoria do Coletivo Qiao.

Reconhecemos plenamente a necessidade de uma crítica aos ataques cínicos e interesseiros dos Estados Unidos às políticas internas da China. Estamos comprometidos com essa tarefa. Mas a esquerda não deve manter uma posição de apologia para a campanha de dura repressão islamofóbica que está ocorrendo agora em Xinjiang.

Relatório de Qiao foi escrito em um estilo que, infelizmente, é muito comum atualmente nas discussões de esquerda sobre a China. Embora o Relatório “reconheça que há aspectos da política da RPC [República Popular da China] em Xinjiang a serem criticados”, não se encontra qualquer crítica em suas 15.000 palavras. Evitando análises sérias, ele compila fatos políticos e biográficos selecionados para sugerir, mas não articular, a conclusão pretendida – que podem ser rejeitadas as acusações de repressão grave em Xinjiang.

Gostaríamos de falar de campos que internamento fossem um mito, fabricado pelo National Endowment for Democracy e pela CIA. Mas não são. Existem ligações problemáticas entre ativistas e organizações individuais e o Estado de segurança americano, e tem havido erros e equívocos nas reportagens sobre Xinjiang. A aplicabilidade de termos como “genocídio” e “escravidão” pode ser debatida, mas nada disso deve permitir o agnosticismo, muito menos a negação, em relação ao que se constitui claramente numa violação chocante dos direitos dos povos nativos de Xinjiang.

Desde 2016, Xinjiang tem visto uma expansão massiva de sua infraestrutura de segurança, apresentando uma rede de campos que compõem um programa punitivo de doutrinação política, exercícios obrigatórios de idioma e treinamento “vocacional” em estilo de reformatório. Os internos vão desde membros do Partido considerados desleais, intelectuais e artistas cujo trabalho têm sustentado as distintas identidades culturais não chinesas da região, até aqueles que se julgam exibir sinais de excessiva fé. No mesmo período, Xinjiang viu um aumento do número de encarceramentos com uigures muçulmanos presos apenas por encorajar seus pares a respeitar sua fé. Outros, entretanto, foram enviados para o interior da China, como parte de programas de trabalho não voluntário destinados a incutir a disciplina de fábrica na população rural de Xinjiang. Em alguns casos, esses trabalhadores foram enviados para fábricas ligadas às cadeias de abastecimento de empresas ocidentais.

Famílias dentro de Xinjiang foram dilaceradas, com cerca de 40% das crianças em idade escolar matriculadas em internatos e muitas crescendo em orfanatos estaduais. Fora da China, uigures, cazaques e outros vivem com o trauma de não saberem o destino de seus familiares.

Enquanto elementos dessas políticas evocam os excessos de campanhas ideológicas anteriores na China, elas ocorrem hoje em novas condições de rápido desenvolvimento capitalista em Xinjiang, com o objetivo de transformar a região em um centro econômico da Ásia Central. A ligação aqui entre a expansão capitalista e a opressão das comunidades indígenas é aquela com a qual a esquerda está familiarizada há muito tempo. Deixar de reconhecer e criticar essas dinâmicas, neste caso, é uma forma de cegueira intencional.

Há várias maneiras pelas quais a política do Coletivo Qiao abandona aqueles que deveriam constituir os princípios-chave de uma esquerda internacionalista hoje, mas queremos destacar uma em particular: o tratamento que dá à questão do “contraterrorismo”.

Qiao quer que acreditemos que a campanha de combate da RPC à resistência radical (deradicalization) está em “contraste absoluto” com as políticas norte-americanas na Guerra ao Terror. Pelo contrário, esse discurso de desradicalização (deradicalization) da China representa uma apropriação deliberada das práticas ocidentais de contraterrorismo. Em seus discursos, o próprio presidente da China, Xi Jinping, encorajou as autoridades a adaptarem elementos da Guerra ao Terror liderada pelo Ocidente desde o 11 de setembro de 2001.

Os autores do Relatório estão cientes desses precedentes, citando políticas ocidentais para identificar preventivamente aqueles “em risco” de radicalização e intervir. Eles tomam nota das políticas de desradicalização altamente intrusivas da França, bem como do Programa de Desistência e Desengajamento da Grã-Bretanha, parte da notória Estratégia de Prevenção. (A essa lista poderíamos, é claro, adicionar os abusos do policiamento de contraterror nos Estados Unidos, na Austrália e em outros lugares). Surpreendentemente, porém, eles citam essas técnicas de policiamento não para criticá-las, mas simplesmente para acusar o Ocidente de um comportamento duplo: reclamam que a China recebeu um nível de críticas que esses governos europeus não receberam.

Isso é totalmente falso da parte de Qiao, um desvio digno da mídia estatal chinesa que eles frequentemente citam. A esquerda, junto com grupos de defesa islâmica, há muito clama pelo fim dessas políticas islamofóbicas, que se apoiam numa falsa associação de fé islâmica e / ou pontos de vista antiimperialistas com tendência à violência anti-social. Qiao ficaria feliz se a China recebesse apenas o mesmo nível de crítica e enfrentasse as mesmas revindicações?

A julgar por seu Relatório, certamente não. Todo o ímpeto de seu relatório é, em vez disso, normalizar paradigmas prejudiciais de “desradicalização” e “contra-extremismo” como uma base aceitável para um Estado integrar seus cidadãos muçulmanos.

Claro que Qiao está impressionado com o fato de “nações de maioria muçulmana e / ou nações que realizaram campanhas contra o extremismo em seu próprio solo” apoiarem a China nas Nações Unidas. Não estamos tão impressionados. Essas “campanhas locais contra o extremismo” replicaram as piores violações da Guerra ao Terror da América, e muitas vezes em colaboração com ela.

Um exemplo que Qiao dá aqui é a Nigéria, cuja Força-Tarefa Conjunta de Contraterrorismo foi acusada pela Anistia Internacional em 2011 de se envolver em “assassinatos ilegais, prisões coletivas, detenções arbitrárias e ilegais, extorsão e intimidação”. Outro é o Paquistão, que o comandante-em-chefe dos EUA no Afeganistão certa vez elogiou como um “grande aliado na guerra contra o terrorismo”, e cujas forças aéreas e terrestres são responsáveis ​​por abusos em série contra populações civis.

Os incidentes de violência contra cidadãos chineses comuns que Qiao cita, obviamente, não devem ser descartados: devemos criticar aqueles que se envolvem no terrorismo, ao mesmo tempo que reconhecemos as condições sociais que o produzem e apontamos para a necessidade de soluções políticas.

Qiao, por outro lado, nos direciona para o mundo sombrio dos especialistas em “observação do terror” que surgiu em simbiose com a Guerra Global contra o Terror, que durou duas décadas, e forneceu justificativas para a violência estatal. Uma das autoridades que ele cita sobre o terrorismo em Xinjiang é Rohan Gunaratna, uma figura desacreditada que fez seu nome nos anos 2000 incitando a América e seus aliados a invadirem países de maioria muçulmana e promulgarem leis repressivas de segurança em casa. Se Gunaratna e sua laia forem nossos amigos, a esquerda não terá necessidade de inimigos.

Invocar acriticamente o “problema do terrorismo” da China e minimizar a severidade da resposta de Pequim a ele pinta uma fachada de esquerda num discurso global de contraterrorismo que representa uma ameaça para as comunidades muçulmanas em todo o mundo. A luta contra o racismo anti-muçulmano e os efeitos devastadores da guerra contra o terrorismo em curso é internacional, e nossa solidariedade nessa luta deve estender-se às suas vítimas na China.

Por essas razões, achamos lamentável que vocês [da Monthly Review] tenham resolvido dar um público mais amplo ao Relatório e compilação de fontes do Coletivo Qiao. Em reconhecimento da existência de perspectivas alternativas na esquerda, e no interesse do debate, esperamos que vocês também publiquem esta carta ao lado dele.

Esperamos oportunidades futuras de colaborar na análise crítica da esquerda com relação à China e ao conflito EUA-China e esperamos que vocês entrem em contato conosco sempre que pudermos ajudá-lo. Para saber mais sobre o Critical China Scholars e nossas atividades, consulte nosso site, que inclui gravações de vídeo de webinars anteriores.

Em solidariedade,

*Critical China Scholars é um grupo de intelectuais composto por Joel Andreas, Angie Baecker, Tani Barlow, David Brophy, Darren Byler, Harlan Chambers, Tina Mai Chen, Charmaine Chua, Christopher Connery, Manfred Elfstrom, Christopher Fan, Ivan Franceschini, Eli Friedman, Jia-Chen Fu, Daniel Fuchs, Joshua Goldstein, Beatrice Gallelli, Paola Iovene, Fabio Lanza, Soonyi Lee, Promise Li, Kevin Lin, Andrew Liu, Nicholas Loubere, Tim Pringle, Aminda Smith, Sigrid Schmalzer, Alexander Day, Rebecca Karl, Uluğ Kuzuoğlu, Ralph Litzinger, Christian Sorace, JS Tan, Jake Werner, Shan Windscript, Lorraine Wong, David Xu Borgonjon.

Tradução: Sean Purdy & Emiliano Aquino.

terça-feira, 2 de março de 2021

All the King’s men

Este é meu segundo blog. Ou melhor, esta é a segunda vez que faço um blog. Danado que seja, na mesma plataforma: blogspot. Há alguns anos fiz um que se perdeu na crítica deletadora dos bytes ou no inevitável esquecimento das senhas, não sei... quem quiser ver, olha! Mas terminou dando certo, pois eu precisava distanciar-me do que estava lá. 

Gosto de escrever. Talvez mais do que escrever, dizer alguma coisa. Terminei sendo convencido por dois amigos que seria melhor ter um blog: os escritos ficariam menos transitórios do que o são no Facebook. Tudo bem, admiti, talvez tenha mais dois ou três leitores. Para quem tem tão poucos já é uma grande conquista! 

Mas como começar? Achei que a melhor forma seria com um texto que, não sendo de minha autoria, contudo me ensinou muito sobre a escrita e sobre a linguagem. Foi escrito pelos "situacionistas" (expressão esquisita, que em nosso português significa quem apoia o governo, quando eles eram - levemos isso a sério! - do tipo: hay gobierno, soy contra!). Os situacionistas eram os membros da Internacional Situacionista, grupo de vanguarda estética, intelectual e política francesa dos anos 50 e 60 cujo ápice de intervenção, criação e invenção práticas foi a participação no 68 francês. O texto a seguir apareceu na revista do grupo, em 1963, intitulada Internationale Situationniste. Mas como começar? Achei que a melhor forma seria com um texto que, não sendo de minha autoria, contudo me ensinou muito sobre a escrita e sobre a linguagem. Foi escrito pelos "situacionistas" (expressão esquisita, que em nosso português significa quem apoia o governo, quando eles eram - levemos isso a sério! - do tipo: hay gobierno, soy contra!). Os situacionistas eram os membros da Internacional Situacionista, grupo de vanguarda estética, intelectual e política francesa dos anos 50 e 60 cujo ápice de intervenção, criação e invenção práticas foi a participação no 68 francês. O texto a seguir apareceu na revista do grupo, em 1963, intitulada Internationale Situationniste.


All the King’s men

I.S., nº 8, janeiro de 1963, pp. 29-33

O problema da linguagem está no centro de todas as lutas pela abolição ou manutenção da alienação presente; inseparável do conjunto do terreno destas lutas. Vivemos na linguagem como no ar viciado. Ao contrário do que estimam as pessoas de espírito, as palavras não brincam. Elas não fazem amor, como acreditava Breton, a não ser em sonho. As palavras trabalham para a organização dominante da vida. E contudo, elas não estão robotizadas; para a infelicidade dos teóricos da informação, as palavras não são elas mesmas “informacionistas”; nelas, manifestam-se forças que podem frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação análoga àquela que os proletários (no sentido clássico, tanto quanto no sentido moderno deste termo) podem manter com o poder. Empregadas durante quase todo o tempo, utilizadas em tempo pleno, em pleno sentido e em pleno não-sentido, elas permanecem em algum lado radicalmente estrangeiras.

O poder dá somente a carteira de identidade falsa das palavras; ele lhes impõe um livre trânsito, determina seu lugar na produção (onde algumas fazem visivelmente horas extras); libera-lhes de algum modo sua caderneta de pagamento. Reconheçamos a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carroll que considera que toda a questão, para decidir o uso das palavras, é a de “saber quem será seu senhor, e ponto final”. E ele, patrão social na matéria, afirma que paga em dobro àquelas que ele usa muito. Compreendamos também o fenômeno de insubmissão das palavras, sua fuga, sua resistência aberta, que se manifesta em toda a escrita moderna (desde Baudelaire até os dadaístas e Joyce), como o sintoma da crise revolucionária de conjunto na sociedade.

Sob o controle do poder, a linguagem designa sempre outra coisa que o vivido autêntico. É precisamente aí que reside a possibilidade de uma contestação completa. A confusão se desvela tal, na organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se revela como uma impostura e um logro. É em vão que um embrião de poder cibernético se esforce por colocar a linguagem sob a dependência das máquinas que ele controla, de tal modo que a informação seja doravante a única comunicação possível. Mesmo neste terreno, resistências se manifestam, e se está no direito de considerar a música eletrônica como uma tentativa, evidentemente ambígua e limitada, de reverter [renverser] a relação de dominação, desviando [en détournant] as máquinas em proveito da linguagem. Mas a oposição é bem mais geral, bem mais radical. Ela denuncia toda “comunicação” unilateral, na arte antiga como no informacionismo moderno. Ela chama a uma comunicação que arruina todo poder separado. Aí onde há comunicação, não há Estado.

O poder vive de furto encoberto. Ele não cria nada, ele recupera. Se ele criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, mas unicamente a “informação” útil. Não se poderia jamais se opor na linguagem, e toda recusa lhe seria exterior, seria puramente letrista. Ora, o que é a poesia, senão o momento revolucionário da linguagem, não separável enquanto tal dos momentos revolucionários da história e da história da vida pessoal?

A apropriação [mainmise] da linguagem pelo poder é assimilável à sua apropriação da totalidade. Somente a linguagem que perdeu toda referência imediata à totalidade pode fundar a informação. A informação é a poesia do poder (a contrapoesia da manutenção da ordem), é a trucagem mediatizada do que é. Inversamente, a poesia deve ser entendida enquanto comunicação imediata no real e modificação real deste real. Ela não é outra coisa que a linguagem libertada, a linguagem que reconquista  sua riqueza e, quebrando seus signos, recobra ao mesmo tempo as palavras, a música, os gritos, os gestos, a pintura, as matemáticas, os fatos. A poesia depende, portanto, do nível da maior riqueza em que, em um estágio dado da formação econômico-social, a vida pode ser vivida e mudada. É então inútil precisar que esta relação da poesia para com sua base material na sociedade não é uma subordinação unilateral, mas uma interação.

Reencontrar a poesia pode se confundir com reinventar a revolução, como o provam à evidência algumas fases das revoluções mexicana, cubana ou congolesa. Entre os períodos revolucionários em que as massas, agindo, acedem à poesia, pode-se pensar que os círculos da aventura poética permanecem os únicos lugares em que subsiste a totalidade da revolução, como virtualidade inacabada, mas próxima, sombra de uma personagem ausente. De modo que, o que aqui é chamado de aventura poética é difícil, perigoso e, em todo caso, jamais garantido (de fato, trata-se da soma das condutas quase impossíveis numa época). Pode-se somente estar seguro daquilo que não é mais a aventura poética de uma época: sua falsa poesia reconhecida e permitida. Assim, enquanto o surrealismo, no tempo de seu assalto contra a ordem opressiva da cultura e do cotidiano, podia justamente definir seu armamento numa “poesia, se preciso sem poemas”, trata-se hoje para a I.S. de uma poesia necessariamente sem poemas. E tudo o que dizemos da poesia não concerne em nada a obsoletos reacionários de uma neoversificação, mesmo alinhada aos menos antigos dos modernismos formais. O programa da poesia realizada não é nada menos do que criar ao mesmo tempo acontecimentos e sua linguagem, inseparavelmente.

Todas as linguagens fechadas – as dos agrupamentos informais da juventude, as que as vanguardas atuais, no momento em que elas se buscam e se definem, elaboram para seu uso interno, as que, outrora, transmitidas em produção poética objetiva para o exterior puderam chamar-se “trobar clus” ou “dolce stil nuovo” – todas têm por objetivo, e resultado efetivo, a transparência imediata de uma certa comunicação, do reconhecimento recíproco, do acordo. Mas semelhantes tentativas são o feito de grupos restritos, em diversos aspectos isolados. Os acontecimentos que eles puderam organizar, as festas que eles puderam dar-se a si mesmos, tiveram que permanecer nos mais estreitos limites. Um dos problemas revolucionários consiste em federar esses tipos de soviets, de conselhos da comunicação, a fim de inaugurar em todo lugar uma comunicação direta que não tenha mais que recorrer à rede da comunicação do adversário (isto é, à linguagem do poder) e possa, assim, transformar o mundo segundo seu desejo.

Não se trata de colocar a poesia a serviço da revolução, mas sim de colocar a revolução a serviço da poesia. É somente assim que a revolução não trai seu próprio projeto. Não reeditaremos o erro dos surrealistas colocando-se ao seu serviço quando precisamente ela não existia mais. Ligado à lembrança de uma revolução parcial rapidamente abatida, o surrealismo se tornou rapidamente um reformismo do espetáculo, uma crítica de uma certa forma do espetáculo reinante, conduzida no interior da organização dominante deste espetáculo. Os surrealistas parecem ter negligenciado o fato de que o poder impõe, para todo melhoramento ou modernização internos do espetáculo, sua própria leitura, uma decriptação da qual ele tem o código.

Toda revolução nasceu na poesia, fez-se de início pela força da poesia. Este é um fenômeno que escapou e continua a escapar aos teóricos da revolução – é verdade que não se pode compreendê-lo se se atém ainda à velha concepção da revolução ou da poesia – mas que geralmente foi sentido pelos contra-revolucionários. A poesia, lá onde ela existe, lhes faz medo; eles se obstinam a se desembaraçarem dela através de diversos exorcismos, do auto da fé* à pesquisa estilística pura. O momento da poesia real, que “tem todo o tempo diante dela”, quer a cada vez reorientar, conforme seus próprios fins, o conjunto do mundo e todo o futuro. Tanto quanto dure, suas reivindicações não podem conhecer compromissos. Ele recoloca em jogo as dívidas não quitadas da história. Fourier e Pancho Villa, Lautréamont et os dinamiteiros das Astúrias – cujos sucessores inventam agora novas formas de greves –, os marinheiros de Kronstadt ou de Kiel e todos aqueles que, no mundo, com e sem nós, se preparam para lutar pela longa revolução, são também os emissários da nova poesia.

A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vazio, a antimatéria da sociedade de consumo, porque ela não é uma matéria consumível (segundo os critérios modernos do objeto consumível: eqüivalente para uma massa passiva de consumidores isolados). A poesia não é nada quando ela é citada, ela pode somente ser desviada, recolocada em jogo. O conhecimento da poesia antiga é, de outro modo, somente exercício universitário, realçando funções de conjunto do pensamento universitário. A história da poesia é somente, então, uma fuga diante da poesia da história, se entendermos por este termo não a história espetacular dos dirigentes, mas sim a da vida cotidiana, de sua ampliação possível; a história de cada vida individual, de sua realização.

Não se deve aqui deixar equívoco sobre o papel dos “conservadores” da poesia antiga, daqueles que aumentam a sua difusão à medida que, por razões outras, o Estado faz desaparecer o analfabetismo. Essas pessoas representam somente um caso particular dos conservadores de toda a arte dos museus. Uma massa de poesia é normalmente conservada no mundo. Mas não há em parte nenhuma os lugares, os momentos, as pessoas para revivê-la, comunicá-la entre si, fazer uso dela. Admitindo-se que isto não pode ser jamais senão no modo do desvio, porque a compreensão da poesia antiga mudou tanto por perda quanto por aquisição de conhecimentos; e porque em cada momento em que a poesia antiga pode ser efetivamente reencontrada, sua presentificação em momentos particulares lhe confere um sentido largamente novo. Mas, sobretudo, uma situação em que a poesia é possível não poderia restaurar nenhum fracasso político do passado (este fracasso sendo o que fica, invertido, na história da poesia, como êxito e monumento poético). Ela vai naturalmente em direção à comunicação – e às chances de soberania – de sua própria poesia.

Estreitamente contemporâneos da arqueologia poética que restitui seleções de poesia antiga recitadas em discos por especialistas, para o público do novo analfabetismo constituído pelo espetáculo moderno, os informacionistas empreenderam combater todas as “redundâncias” da liberdade para transmitir simplesmente ordens. Os pensadores da automatização visam explicitamente um pensamento teórico automático, por fixação e eliminação das variáveis na vida como na linguagem. Eles não param de achar ossos em seu queijo!* As máquinas de tradução, por exemplo, que começam a assegurar a uniformização planetária da informação tanto quanto a revisão informacionista da antiga cultura, estão submetidas a seus programas preestabelecidos, aos quais deve escapar toda acepção nova de uma palavra, assim como suas ambivalências dialéticas passadas. Assim, ao mesmo tempo, a vida da linguagem – que se liga a cada avanço da compreensão teórica: “As idéias melhoram. O sentido das palavras participa disso”** – se acha expulsa do campo maquinista da informação oficial, mas também o pensamento livre pode se organizar em vista de uma clandestinidade que será incontrolável pelas técnicas de polícia informacionista. A pesquisa de sinais indiscutíveis e de classificação binária instantânea vai tão claramente no sentido do poder existente, que ela dirá respeito à mesma crítica. Até em suas formulações delirantes, os pensadores informacionistas se comportam como pesados precursores diplomados de amanhãs que escolheram e que são justamente os que modelam as forças dominantes da sociedade atual: o reforço do Estado cibernético. Eles são os homens lígios de todos os suseranos da feudalidade técnica que se consolida atualmente. Não há inocência em sua bufonaria, eles são os bobos da corte.

A alternativa entre o informacionismo e a poesia não diz mais respeito à poesia do passado; assim como nenhuma variante daquilo que se tornou o movimento revolucionário clássico não pode mais, em nenhum lugar, ser contado numa alternativa real em vista da organização dominante da vida. É de um mesmo julgamento que extraimos a denúncia de uma desaparição total da poesia nas antigas formas em que ela pôde ser produzida e consumida, e o anúncio de seu retorno sob formas inesperadas e operantes. Nossa época não deve mais escrever instruções poéticas, mas executá-las.

* Em português, no original.

* “Ils n’ont pas fini de trouver des os dans leur fromage !”. Uma possível equivalência em nossa língua talvez pudesse ser a de: “Encontrar pêlos em ovo”.

** Lautréamont, Poesias II, tr. br. C. Willer, São Paulo, Iluminuras, 1997, p. 277.


Tirem seus filhos surdos das escolas de ouvintes!

Foto: O Globo Esse título parece uma palavra de ordem, mas não é. É um grito angustiado.  Todos os anos as três escolas que em Fortaleza ofe...