quarta-feira, 3 de novembro de 2021

A questão surda e os escrúpulos teóricos de Marx


 "... o próprio educador deve ser educado". (Marx, Teses sobre Feuerbach).

Num momento em que uma leva de marxistas acha que deve improvisar pontos de vista sobre a Educação de Surdos, sem nunca se ter dedicado a pesquisar empírica e teoricamente a questão, talvez seja legal lembrar os escrúpulos teóricos de Marx:
"No ano de 1842-43, como redator da Gazeta renana, vi-me pela primeira vez, perplexo, perante a dificuldade de ter também de dizer alguma coisa sobre o que se designa por interesses materiais. Os debates do Landtag Renano sobre roubo de lenha e parcelamento da propriedade fundiária, a polêmica oficial que Herr von Schaper, então presidente da província renana, abriu com a Gazeta renana sobre a situação dos camponeses do Mosela, por fim as discussões sobre livre-cambismo e tarifas alfandegárias protecionistas deram-me os primeiros motivos para que me ocupasse com questões econômicas. Por outro lado, tinha-se nesse tempo — em que a boa vontade de 'ir por diante' repetidas vezes contrabalançava o conhecimento das questões — tornado audível na Gazeta renana um eco do socialismo e comunismo francês, sob uma tênue coloração filosófica. Declarei-me contra esta remendaria, mas ao mesmo tempo confessei abertamente, numa controvérsia com a Gazeta geral de Augsburg, que os meus estudos até essa data não me permitiam arriscar eu próprio qualquer juízo sobre o conteúdo das orientações francesas. Preferi agarrar a mãos ambas a ilusão dos diretores da Gazeta renana, que acreditavam poder levar a anular a sentença de morte passada sobre o jornal por meio duma atitude mais fraca deste, para me retirar do palco público e recolher ao quarto de estudo". (Prefácio de 1859).
Essa é uma espécie de ética teórica, de escrúpulo diante das questões que não se conhece e é uma postura também política, de não ter que falar sobre algo só porque o mercado de opiniões (o "palco") o exige. Não, os marxistas nem sempre devemos falar algo, tomar uma posição pública, cometer a impostura de adotar um critério. Ao contrário, às vezes precisamos calar: como diziam os céticos antigos, sempre cuidadosos, precisamos às vezes "suspender o juízo"; não, porém, para "acalmar a alma", mas justamente, como eles também defendiam, para que a "alma" continue a se interrogar, a duvidar, a procurar... a se atormentar com o real, que lhe escapa quase sempre.
Mas tem outro aspecto, talvez até mais importante. Posições teóricas em determinadas situações são políticas, pois têm consequência prática. A postura de Marx está intimamente ligada à posição materialista do reconhecimento da resistência do objeto, do primado do objeto diante do pensamento, posição teórica que, em termos políticos, põe em questão a soberania do sujeito e ergue a exigência materialista da democracia.
(A rigor, a concepção materialista da inesgotabilidade do real pelo pensamento, bem como que o real se modifica permanentemente, deveria significar sempre essa renúncia democrática ao projeto do pensamento governar o real).
Isso significa em nosso caso: conhecer o que os Surdos vivem, a sua experiência escolar, sua experiência comunitária, sua história e a história de suas lutas pelo direito de falar sua própria língua etc., assim como abrir mão da posição "socialista utópica" (na verdade, bem "científica") de planos para a humanidade, de introdução na experiência real dos sujeitos de projetos elaborados e conduzidos de fora dessa mesma experiência (a gente já sabe em que isso resulta...).

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