domingo, 7 de maio de 2023

Alegorias de Ednardo

 “Nada parado, nada seguro, nada infinito ou puro”.

Ednardo, Amor de estalo, 1978


Foto: Lugares invisíveis

O sonho de toda cidade é ter seu poeta, porque a vida precisa de palavras nas quais se expresse. O que é verdade para a vida individual, não é menos para a vida coletiva. Por isso, a lírica moderna tanto tematizou a cidade, e talvez até mesmo a tenha tornado seu tema por excelência. A esse respeito, Walter Benjamin defendeu a ideia de que Baudelaire teria constituído a lírica moderna, na experiência europeia dos Oitocentos, por dar palavras ao sentimento de perda da Paris antes vivida e que se desfazia pouco a pouco diante de seus olhos. “A velha Paris não é mais! (Uma cidade / Muda mais rápido, ai, que um coração mortal)”, lamenta-se o poeta na primeira parte de O cisne, abrindo a segunda parte do poema com esta estrofe:

Paris muda! porém minha melancolia
Não!, andaimes, palácios novos, avenidas,
Blocos, para mim tudo vira alegoria,
E mais que as pedras, pesam lembranças queridas.

É a cidade que substitui, como figura poética, a mulher amada do romantismo, introduzindo na lírica moderna um elemento radicalmente novo, histórico e social, que é a experiência da mutabilidade e da perecibilidade de todas as coisas. “Tudo o que é sólido desmancha no ar…” Ao invés do suposto repouso confortável da natureza ou da ideia de perda de alguma existência ideal, a moderna lírica – como a baudelariana – canta a perda do que nunca foi ideal ou em repouso, fazendo confrontar ao presente seu próprio passado, talvez para lembrá-lo que ele não é eterno.

Tudo isso me lembra Ednardo, e o lado ruim dessa lembrança é que talvez possa passar a ideia de que eu escute e leia o poeta de Fortaleza tomando como seu modelo o poeta de Paris. Não é isso, mas não deixa de chamar minha atenção o fato de ele, a partir de nossas próprias experiências musical, literária e social, se encontrar espontaneamente, desde seus primeiros discos solo, com o mais moderno dos temas líricos: a cidade moderna. Em Longarinas (O berro, 1976), por exemplo, em cujo início (“Faz muito tempo que eu não vejo / O verde daquele mar quebrar”) a gente poderia aguardar o tema romântico dos “verdes mares bravios de minha terra natal”, o poema se encaminha imediatamente, no entanto, para a cidade e sua caducidade: “Nas longarinas da ponte velha / Que ainda não caiu”. Alguns versos depois, aparecem aqueles carregados de uma universalidade só possível na inscrição de uma experiência poética da cidade que, “ai, muda mais rápido do que o coração de um mortal”:

Uma a uma, coisas vão sumindo
Uma a uma, se desmilinguindo
Só eu e a ponte velha teimam resistindo

As longarinas, a ponte velha, são o moderno, o citadino, e, ao mesmo tempo, o antigo na e da cidade moderna, onde, “uma a uma, as coisas vão desmilinguindo”. Se Baudelaire diz que o coração do mortal muda menos rápido do que sua cidade amada, daí que sua melancolia não mude, Ednardo canta, no mesmo sentido, que só ele “e a ponte velha teimam resistindo”. Em ambos os casos, sob o olhar alegórico do poeta, a “cidade tomada por constante movimentação se paralisa” (Benjamin). A ponte velha e suas longarinas são as alegorias de uma cidade que, impulsionada por um desenvolvimento econômico irrefreável, muda e, ao mesmo tempo, em pequenos traços, permanece a mesma; e permanece a mesma junto do poeta, que, tomando-as como alegorias do que subsiste ao movimento da economia, canta a resistência das longarinas contra as quebradas das ondas do mar.

Como uma força da natureza, todas as coisas vão desaparecendo, numa cidade que muda rapidamente, acompanhando o desenvolvimento econômico dependente e baseado no endividamento externo do Estado, que, assim, pode dar toda sorte de incentivos e subsídios ao capital durante a ditadura; e endividamento, do mesmo modo, dos consumidores, ampliando o consumo e, portanto, incentivando do outro lado a industrialização e a ampliação dos chamados serviços. O capital se concentra, graças à política de arrocho salarial, se expande, graças aos incentivos estatais, ao mesmo tempo em que as cidades incham, com a mudança do seu perfil demográfico, este cada vez mais urbano; e não apenas graças à capacidade de atração do mercado de trabalho das áreas urbanas, em processo de industrialização e de ampliação do setor de serviços, mas em grande parte em virtude da expulsão do campo, devido à concentração da terra (que, ao contrário do que se imaginou durante décadas, em nada impede a industrialização brasileira). É assim que a modernização conservadora durante a ditadura consolida as relações capitalistas, com a força de um fenômeno natural.  O desenvolvimento econômico, uma força natural: “E o mar engolindo lindo”, do mesmo jeito que se vê o “verde daquele mar quebrar / Nas longarinas da ponte velha”.

Em Ednardo, porém, o tema da cidade moderna se entrecruza com outro secular tema lírico-poético, o do exílio da terra pátria (que ganhou acolhida entre nós pelo menos desde o romantismo rebelde de Gonçalves Dias). Ainda que o tema seja universal, é bem particular nosso (digo: dos cearenses, dos nordestinos), com o êxodo de nossos antepassados para o Sudeste, em busca de trabalho, dadas as condições sociais aqui existentes de desenvolvimento das secas (sim, já que o problema nunca foi o fenômeno natural das secas, mas as condições sociais dominantes…). A nova geração de poetas, músicos e intérpretes cearenses, que, nos anos 1970, iam ao Rio ou São Paulo tentar fazer carreira artística, sabia que estava repetindo a experiência de todos os que, antes e então, foram expulsos daqui pelo latifúndio e que, sem meios de produção, iam ao Sul à cata de lá dar uso a seus talentos.

Carneiro, do multicriador Augusto Pontes, “é a mais emblemática desse contexto”, disse uma vez Nirton Venâncio. “Amanhã se der o carneiro / O carneiro / Vou m’imbora daqui pro Rio de Janeiro / As coisas vêm de lá / Eu mesmo vou buscar”. Gravada em 1974 por Ednardo (em seu primeiro disco solo, O romance do Pavão Mysteriozo), essa música lembra a concentração dos meios fonográficos (gravadoras), de divulgação (TV, rádios, revistas) e de distribuição no Rio e em São Paulo, daí a necessidade de se ir para lá: e se as coisas vêm de lá, eu mesmo vou buscar. No Pessoal do Ceará, de 1973, cuja gravação Ednardo dividiu com Teti e Rodger Rogério, Ingazeira antecipa o tema: “O Sul, a sorte, a estrada me seduz / É ouro, é ouro em pó que reluz”. No mesmo disco, o poeta se apresenta ao público “de lá” em Terral: “Eu venho das dunas brancas / Da onde eu queria ficar”, e segue, no restante da letra, um dos mais belos hinos a esta cidade, um hino de amor, que descreve Fortaleza como quem fala do corpo da amada. Esse tema está entrecruzado com o outro, repito, como mostra logo o primeiro verso de Longarinas: “Faz muito tempo que eu não vejo” etc.

Esses temas modernos, nos quais se expressa uma experiência social, ganham lugar ainda num outro aspecto, sobre o qual, por falta de competência, tenho mais dificuldades para falar: o de seus gêneros musicais. Em suas canções, os diversos gêneros tradicionais ganham atualidade dialética, fazendo-se contemporâneos dos gêneros mais recentes. Gilmar Carvalho escreveu que Ednardo “tenta, ousa e pontilha seu trabalho com influências várias, do rock ao maracatu, do frevo à lambada”. Penso no maracatu de Pavão Mysteriozo (1974): tão intensamente tradicional, até mesmo ancestral, disse-me Henrique Dídimo, quanto intensamente moderno, capaz de ser acolhido sem restrição no mercado fonográfico nacional (portanto, numa sensibilidade de massas naquele momento já urbana). Ednardo faz-se moderno carregado pelas tradições literárias e musicais existentes no Ceará, elas mesmas estuário de muitas tradições culturais de outros cantos e épocas do mundo (africanas, árabes, judaicas, cristãs barrocas etc.); e por isso torna-se facilmente reconhecível em seu alcance, digamos, “universal”.

Se olhadas com cuidado, suas músicas dão expressão a não poucas questões fundamentais a uma época, a época de nossa transição conservadora à modernidade; porém, lembrando-nos o tempo todo, seja nas letras, seja nos arranjos dialéticos dos gêneros musicais de suas composições, de que nem sempre fomos assim.


Publicado em Segunda Opinião, em 03-07-2022

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