Num
artigo de opinião publicado no O Povo
há algumas semanas sobre a discussão nacional acerca do Novo Ensino Médio, a
Profª Sofia Lerche usou, para exprimir sua opinião de que as partes presente ao
debate não prestavam atenção no que as demais diziam, o termo “diálogo de
surdos”. No sentido dado a esse termo naquele artigo, eu teria escrito a oração
acima deste modo: ‘as diversas partes não estavam ouvindo o que as demais
diziam’.
De onde vem essa identificação da condição surda à impossibilidade de
entender as coisas e compreender os outros? Minha hipótese é que vem de uma
experiência histórica bem recente e bem próxima de nós. No último século e meio,
as instituições educativas de cegos e surdos, criadas pelo iluminismo do século
XVIII, foram substituídas por instituições reabilitadoras, de natureza clínica.
O maior dano, sem dúvida, sofreram-no as crianças surdas, impedidas de falar sua
língua de aquisição espontânea, que são as línguas de sinais. Suas
não-mais-escolas deixaram de ensinar conteúdos para treiná-las à fala.
Tornaram-se “escolas especiais”; em consequência, nasceu um poderoso dispositivo
institucional chamado Educação Especial. Se o Iluminismo liberal do XVIII e
início do XIX mostrou que, com o braile para a escrita e as línguas de sinais
para a comunicação e o desenvolvimento do pensamento, era possível oferecer
educação e aprendizado aos cegos e aos surdos, a Educação Especial, nascida no
final do XIX, resolveu tratá-los como defeituosos carentes de reabilitação.
A Profª Sofia Lerche, certamente, se perguntada, não teria a menor dúvida sobre a
capacidade de compreensão e entendimento dos surdos. Seu erro grosseiro apenas
deixa expressa, à costas da sua consciência, uma representação social,
institucionalmente forte, sobre os surdos e as línguas de sinais. Representação
que até hoje é mantida pela Educação Especial, pela bilionária indústria (de
aparelhos auditivos, aparelhos e utensílios de exames audiométricos etc.) e
pelas não menos ricas instituições médico-terapêuticas.
Esse artigo foi publicado em O Povo no dia 19/04/2023.
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